No final ano passado resolvi sair do meu trabalho e passar mais tempo no Brasil. Seriam dois meses dedicados aos meus amigos e família mas também a conhecer projetos sociais e a ensinar programação.
Mas qual a motivação pra ensinar programação? A taxa de desemprego no Brasil bateu 11% em Agosto de 2019, com recorde de vagas no mercado informal. Segundo o Valor, 9% das pessoas de 18 a 24 anos de idade que conseguiram uma ocupação remunerada nos últimos 12 meses foram parar no mercado de trabalho informal. Em contrapartida, no Brasil 70 mil profissionais de tecnologia são demandados por ano mas a oferta é de apenas 46 mil (Brasscom).
A princípio, a ideia era organizar um treinamento de 40 horas, apoiado por empresas, para pessoas de baixa renda que não tivessem uma formação profissional e que estivessem desempregadas. Junto com um amigo, idealizamos o projeto perfeito: os estudantes receberiam vale-transporte e alimentação durante o curso e, além da capacitação, teriam a chance de fazer um estágio em uma empresa da região.
Nós, sonhadores, estávamos contando com um caminho perfeito pela frente: estávamos confiantes que encontraríamos empresas para patrocinar o curso e parcerias para os estágios. Infelizmente não foi bem assim. Quando eu estava prestes a tirar o meu cavalinho da chuva, uma pessoa me falou sobre o CJCC.
Que diacho é o CJCC
Os Centros Juvenis de Ciência e Cultura (CJCC) são uma iniciativa da Secretaria de Educação do Estado da Bahia para promover a ampliação da jornada escolar e a diversificação do currículo dos estudantes.
Na prática isso significa que os CJCCs são escolas normais que oferecem também outras atividades interdisciplinares, como cursos, eventos e oficinas. Na cidade de Feira de Santana (minha cidade natal), o CJCC oferece atividades que variam de como criar instrumentos musicais com plástico até oficinas de como produzir o seu próprio podcast. Essas oficinas podem ser ministradas por pessoas voluntárias - foi aqui que eu comecei a minha história com o ensino de Python para alunos da rede pública.
O CJCC é voltado para estudantes do 9º ano do ensino fundamental ao 3º ano do ensino médio e foi uma amostra dessa turma que participou do primeiro curso de programação da instituição.
O curso
As oficinas no CJCC podem durar até 20 horas. Distribuí as aulas em 5 dias, cada uma com um projetinho diferente para não entediar a galera. A turma era formada por 12 alunos e 2 professores (👀).
O laboratório
Me informaram que o curso aconteceria em um laboratório com Chromebooks e o desespero bateu grande - afinal, eu nunca tinha configurado Python em um Chromebook e muito menos em um da rede estadual (provavelmente cheio de bloqueios). No final acabamos indo para um laboratório com máquinas com Windows. Boa parte das máquinas não estava com o sistema operacional atualizado, o que me fez passar um bom tempo no laboratório para deixar tudo nos trinques. Algumas nem internet tinham ou estavam super lentas. Ninguém parece usar pendrive hoje em dia mas ter um na mochila salvou o dia.
Instalei nas máquinas:
- Python 3.8
- VS Code
- Git
A primeira lição aprendida foi essa: sempre vá ao laboratório dias antes do curso para configurar tudo e se certificar que está tudo certo.
Não tinha máquina para todo mundo então alguns alunos trabalharam em duplas. Dentre as duplas, alguns eram mais tímidos. E, embora eu pedisse pra trocarem de lugar sempre, os mais introvertidos ficavam com receio de dirigir na programação.
Mais uma lição: se possível, organize para cada aluno ter seu próprio computador
As aulas
Essa foi a primeira vez que eu tive a oportunidade de ensinar programação a quem não tinha nenhum background na área. Para ser sincera, eu não sabia muito o que esperar e fiquei perplexa com a quantidade de detalhes que precisamos saber para executar um programa, por mais simples que ele seja. Logo ficou claro que eu precisaria melhorar a minha comunicação, tentar captar melhor se eles haviam entendido ou não e também dar um tempo para que eles pudessem absorver o conteúdo.
Se livrar dos termos técnicos e ter a empatia necessária a quem está aprendendo algo completamente novo
O pré-requisito para participar do curso era ter feito o curso de informática básico. Apesar de contar com o fato de que os alunos já saberiam algumas coisas como o que são pastas e arquivos, muito teve de ser revisado e alguns estavam vendo esse conteúdo pela primeira vez. Ao passo que umas coisas moviam-se extremamente devagar, outras eram mais rápidas do que esperado. Isso me fez precisar atualizar o conteúdo do curso todos os dias. 🤓
Para lidar com essa galerinha pré-adolescente/adolescente exigiu trabalhar com coisas que eles relacionassem com seu dia a dia. Eu, sem experiência alguma com isso, resolvi bolar vários exemplos para cada aula: implementamos juntos alguns joguinhos como salada de frutas (ABC em algumas regiões do Brasil), Forca e Pedra, Papel e Tesoura, e fizemos mais outras coisas legais como enviar emails e criar bots com Python. Deu certo! Alguns outros exemplos eu tive que simplesmente esquecer por que ou não era do interesse deles ou por que não cabia mais.
Ser flexível foi a coisa mais importante que eu aprendi durante essa experiência com ensino
Em uma das aulas pedi para que os alunos tentassem bolar algo por conta própria e eu os ajudaria a programar. Uma das alunas estava desmotivada, não conseguia pensar em uma ideia de programa para criar. Comecei a perguntá-la o que ela gosta e ela disse:
— Eu gosto de BTS — O que é isso? 😳 — K-pop, pró*. Sabe o que é isso?
*no interior da Bahia, alunos chamam professores carinhosamente de pró
Bem, naquele dia descobri que BTS é um acrônimo de Bangtan Boys, uma banda de K-pop. Mais tarde ela sugeriu um site para classificar notícias falsas sobre a banda. Segundo ela, existem muitos sites de fofoca que compartilham informações falsas. Um fact-checker de K-pop… Achei muito pra frente, fiquei orgulhosa.
Envolver os alunos e o que eles gostam é importante para mantê-los motivados
Eu foquei as minhas aulas em mostrar para os alunos o que é possível fazer com programação. O conteúdo está nesse site aqui.
Os alunos
Durante aquela semana fui aprendendo um pouco mais sobre os alunos. O período de férias já havia começado e muitos deixaram de ir ao curso, ficando apenas metade deles. Essa metade esteve lá durante todos os dias e era sempre ótimo encontrar com eles. Umas figuras. Convivendo com eles pude perceber que eram pessoas muito simples, cheias de ideias e animados. Eles tinham uma pureza… Uma ingenuidade boa. Não sei explicar bem.
Muitos iam juntos pra escola para reduzir o risco de serem assaltados. Nem todos tinham celular. Houve um caso de dois irmãos que dividiam um celular. Os que tinham celular, deixavam o aparelho em casa ao irem sozinhos para a escola. Pelo que pude perceber, apenas um aluno tinha computador em casa. Aquele tempo no curso era o tempo que eles tinham para acessar a internet em uma tela maior. Um dos motivos de criar o site foi dar para eles um lugar para revisar o conteúdo que aprendemos sem precisar de um computador. E, para minha surpresa, muitos deles acessavam o conteúdo em casa.
No laboratório havia apenas uma grande TV, o que demandava aumentar bastante a fonte do editor e ir coordenando com a galera quem já havia copiado ou feito certa parte do exercício. Certo dia notei que um dos alunos, mesmo sentando perto, levantava-se a cada nova frase que precisava copiar. Conversando com ele, descobri que ele precisava de óculos. Mas que precisava ir certo dia, super cedo, em tal lugar para pegar uma promoção e conseguir fazer o exame de graça.
Um outro dia, após descobrir que eu moro na Alemanha, um aluno veio conversar comigo e perguntar se eu falava em inglês. Ele comentou que muitas pessoas, inclusive professores, riam dele quando ele dizia que o sonho dele era aprender inglês e viajar o mundo. Que ele já teve oportunidades para, inclusive, entrar no crime mas algo diz pra ele que ele merece mais que isso, só que está difícil encontrar emprego. Esse aluno estuda, vai a oficinas, parece ser um menino ótimo. Não deve ter mais de 18 anos.
Um pouco do seu tempo pode fazer a diferença na vida de alguém
Nessa breve experiência deu para ver o quanto um professor faz a diferença na vida de um aluno. Precisamos cuidar melhor dos nossos professores.
Conclusão
Gostaria muito de colocar a minha fotinha com eles aqui mas prefiro preservá-los, já que compartilhei algumas informações sensíveis. Eu fui dar aula a eles achando que eu iria ensinar algo mas, na verdade, eu aprendi demais. Um grande MUITO OBRIGADA ao pessoal do CJCC por ter me dado essa oportunidade. Foi uma experiência maravilhosa.
Lá no início desse texto eu comentei que queria fazer um treinamento de 40 horas, oferecer estágio, etc. Bem, pelo visto apenas 40 horas não fosse o suficiente. A carreira em programação mudou a vida de muitas pessoas e eu ainda acredito que é uma boa saída. Só temos que pensar melhor em como chegar lá.
O conteúdo e planejamento das aulas estão no site aprendendo Python. O código é aberto e conteúdo pode ser utilizado livremente. Se você tiver uma chance, por menor que seja, contribua com a sua comunidade ou com o lugar de onde você veio. Uma palestra, uma conversa, uma palavra de ânimo, faz a diferença na vida das pessoas. E na sua também.
comments powered by Disqus